José Carlos Kulzer critica desigualdade criada pela Licença Compensatória: “Aposentados não podem pagar essa conta”

Para quem está de fora, juízes e procuradores aposentados parecem fazer parte do mesmo grupo que hoje ocupa as manchetes sobre supersalários e penduricalhos. A realidade, porém, é bem diferente; e o que deveria ser um debate sobre a paridade virou um problema de imagem também para os aposentados e pensionistas.

Quem explica essa distorção é José Carlos Kulzer, diretor Financeiro da ANAMPA na Gestão 2024-2025 e um dos primeiros a criticar publicamente a Licença Compensatória, esclarecendo como a manobra ampliou a desigualdade entre ativos e aposentados. Em seu artigo sobre o caráter remuneratório da Licença Compensatória, ele esclarece o impacto dessa distorção para a categoria.

“Não queremos expor os colegas da ativa, mas não podemos nos sentir culpados por algo que não criamos. Quem deve responder por essa distorção são aqueles que implementaram essas benesses para os ativos, não os aposentados, que foram simplesmente ignorados nesse processo”, afirma.

Gaúcho radicado em Santa Catarina, Kulzer ingressou na magistratura em 1997, após atuar como advogado trabalhista e procurador da Caixa Econômica Federal. Presidiu a Amatra12 e participou de uma diretoria da AMB, e acompanhou de perto o funcionamento do Judiciário. Essa experiência lhe deu clareza sobre um problema que se agravou ao longo do tempo: a estrutura foi moldada para beneficiar os ativos, enquanto os aposentados e pensionistas ficam para trás.

Agora, como diretor Financeiro da ANAMPA, Kulzer se dedica a estruturar a associação com planejamento cuidadoso. Ele defende que a entidade precisa crescer de forma responsável e se consolidar como um espaço de informação e articulação para a defesa dos direitos dos aposentados. Nesta entrevista, ele fala sobre os desafios da nova associação, a luta por paridade e os impactos da Licença Compensatória, além das estratégias para garantir que eles não sejam mais ignorados.

O senhor ingressou na magistratura em 1997. Desde a faculdade já tinha o objetivo de se tornar juiz ou essa decisão surgiu ao longo da carreira?

José Carlos Kulzer: Não, ser juiz nunca foi meu objetivo inicial. Eu gostava de advogar e estava satisfeito com meu trabalho na Caixa Econômica Federal, onde atuava na defesa da instituição em questões trabalhistas. Em Porto Alegre, éramos uma equipe de oito advogados, e foi justamente ao ver uma colega que trabalhava ao meu lado ser aprovada para juíza do trabalho que me dei conta de que também poderia seguir nesse trilho.

Comecei a prestar concursos porque fazia muitas audiências e tinha contato frequente com magistrados, o que despertou meu interesse pela magistratura. Além disso, no Rio Grande do Sul, há uma tradição muito forte na área jurídica, e trabalhávamos com escritórios excelentes. Muitas ações complexas começavam ali e depois se espalhavam pelo Brasil. Defendíamos a Caixa em casos que serviam de referência para todo o País, o que me forçou a estudar cada vez mais.

Mas sempre tive uma inclinação para a atuação sindical e associativa. Na Caixa, fui delegado sindical e já havia trabalhado em sindicato. Então, quando entrei para a magistratura, essa visão associativa permaneceu, e foi natural que, mais tarde, eu me envolvesse na luta pelos direitos dos aposentados.

Como foi sua experiência como presidente da Amatra12 e o que essa passagem por lá representou para sua trajetória?

Kulzer: Foi uma experiência muito mais gratificante para mim do que atuar na própria vara do trabalho. Eu me sentia mais realizado dentro da associação do que no exercício diário da magistratura. Quando você começa a conhecer os bastidores e a estrutura pesada do Judiciário, passa a enxergar certas incoerências e se decepciona com o seu funcionamento.

O distanciamento da realidade, os discursos vazios e o descompasso com as demandas concretas da sociedade foram desgastando minha relação com a carreira. Por um lado, temos o Ministério Público, que, ao invés de resolver problemas, muitas vezes cria novos entraves com demandas que parecem mais ideológicas do que práticas. De outro, um Judiciário que sofre com morosidade processual, em um sistema que emperra em formalismos.

Quando se está dentro da estrutura, convivendo com essas questões no dia a dia, essa insatisfação cresce. E foi isso que, de certa forma, me fez optar por seguir outro caminho e me dedicar à luta associativa, onde senti que poderia fazer a diferença de forma mais concreta.

O senhor foi um dos primeiros a alertar publicamente o caráter remuneratório da Licença Compensatória, hoje um dos pontos de maior indignação entre os aposentados e pensionistas. Poderia nos explicar um pouco melhor do que se trata e por que essa medida gerou tanta insatisfação?

Kulzer: A licença compensatória é um mecanismo que foi implementado de forma bastante silenciosa, sem decisão judicial ou previsão expressa em lei, apenas por meio de resoluções administrativas. Diferente do auxílio-moradia, que rapidamente foi entendido pela opinião pública, essa licença é mais difícil de compreender até mesmo para quem é da área, pois foi muito bem arquitetada.

O conceito inicial era simples: permitir que magistrados e membros do Ministério Público tivessem direito a um dia de folga para cada três dias corridos, inclusive quando não é prestado trabalho. Só que isso foi sendo expandido de forma absurda. Hoje, essa licença incide sobre férias, recessos, feriados, licenças médicas, afastamentos por auxílio-saúde, licença-maternidade, e até sobre licenças para exercício de mandato associativo. Ou seja, mesmo sem trabalhar, o tempo continua contando para gerar novas folgas.

Além disso, essa folga pode ser convertida em dinheiro, à conveniência dos tribunais, o que significa que, na prática, o benefício exclusivo aos da ativa acabou se tornando uma remuneração indireta, isenta de imposto de renda e sem incidência previdenciária.

Quando eu soube dessa licença compensatória, nem conseguia acreditar no que estava acontecendo. Comecei a pesquisar e percebi que essa distorção foi se espalhando pelos tribunais e pelo Ministério Público de forma planejada e discreta. A repercussão foi enorme, tanto entre os aposentados quanto entre os próprios ativos que entendiam a gravidade do problema.

Claro que nem todos gostaram das minhas críticas. Fui ameaçado de expulsão da minha associação por estar publicamente denunciando essa aberração. Outros colegas, também foram pressionados por expor essa distorção. Mas sabíamos que era necessário trazer essa discussão à tona, porque os aposentados estavam sendo enganados e excluídos do debate.

Como essa a Licença Compensatória afetou os aposentados e pensionistas?

Kulzer: A estratégia foi muito bem planejada. O primeiro passo foi no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que aprovou a medida em janeiro de 2023. Depois, em outubro de 2023, a Justiça Federal e a Justiça do Trabalho implementaram suas próprias versões, através de resoluções dos respectivos conselhos. Nos estados, a incorporação veio por meio de normativas locais, o que dificultou a percepção do problema em nível nacional.

Mas o impacto para os juízes e membros do Ministério Público aposentados e pensionistas foi devastador. Primeiro, porque esse tipo de benefício foi criado justamente para que não fosse estendido a quem já se aposentou. Estes vivem exclusivamente do subsídio, que não tem qualquer reajuste real há anos, enquanto os ativos encontram mecanismos indiretos para aumentar sua remuneração.

Além disso, isso cria um problema político grave. A concessão dessas vantagens praticamente inviabiliza a aprovação de medidas como a PEC do Adicional por Tempo de Serviço (ATS), porque quando os parlamentares veem magistrados e procuradores recebendo acima do teto constitucional, a reação imediata é barrar qualquer iniciativa de reajuste para a categoria. Outro impacto é a deterioração da imagem das instituições. É crescente o olhar crítico sobre os chamados ‘penduricalhos’ salariais, então isso prejudica não só a credibilidade da carreira, mas a defesa legítima dos direitos dos aposentados.

Na prática, quais as implicações jurídicas dessa diferenciação entre ativos, aposentados e pensionistas?

Kulzer: Desde o início, essa licença foi estruturada para parecer uma parcela indenizatória e, assim, ser excluída do cálculo da aposentadoria. Mas a verdade é que ela não indeniza nada. Uma indenização pressupõe um gasto real do servidor, como ocorre com diárias ou auxílio-saúde. No caso da licença compensatória, não há despesa para ser reembolsada – é apenas um artifício para aumentar os ganhos dos ativos sem precisar repassar o benefício aos aposentados.

O problema é que essa justificativa não se sustenta juridicamente. A paridade entre ativos e aposentados ou pensionistas é um princípio constitucional e, quando um benefício claramente remuneratório é concedido apenas para os ativos, os aposentados são prejudicados de forma ilegítima. Como os ativos estão recebendo valores acima do teto constitucional por meio dessa licença, a aprovação de reajustes da base salarial se torna ainda mais difícil. Então isso criou uma desigualdade absurda, pois nenhum magistrado ou procurador que se aposentou antes de 2023 recebeu essa licença.

A ANAMPA está atuando para desmascarar essa prática e mostrar que os aposentados e pensionistas não podem ser ignorados nessa equação. Nosso papel é questionar esta realidade, e se necessário, acionar o STF para garantir que a paridade seja respeitada e que essa distorção seja corrigida, por considerarmos inconcebível um juiz ou procurador de início de carreira receberem o dobro de quem prestou serviços por anos a fio ao Judiciário e ao Ministério Público, e até de ministros do próprio Supremo.

O senhor mencionou que há uma percepção equivocada sobre a remuneração dos aposentados e pensionistas. De que forma essa distorção tem impactado a imagem das carreiras?

Kulzer: Mesmo após a aposentadoria, continuo sendo visto como juiz e carrego essa identidade comigo. O problema é que, muitas vezes, somos associados à imagem que a mídia projeta sobre a magistratura, sem qualquer distinção. Se até dentro da própria família enfrentamos questionamentos sobre nossos vencimentos, imagine como a sociedade nos enxerga. Nossa remuneração está muito distante das cifras que circulam nos noticiários. E o mais frustrante é saber que colegas da ativa recebem valores muito superiores devido aos penduricalhos que foram criados ao longo do tempo.

A discrepância é difícil de aceitar. A imprensa não diferencia quem está na ativa de quem já se aposentou. Quando surgem reportagens sobre benefícios questionáveis, todos são colocados no mesmo balaio, como se os aposentados e pensionistas também estivessem sendo favorecidos. Mas a realidade é outra: não recebemos nada disso.

E ao mesmo tempo em que não queremos expor os colegas da ativa, não podemos nos sentir culpados por algo que não criamos. Quem deve responder por essa distorção são aqueles que implementaram essas benesses para os ativos, em especial as cúpulas do Poder Judiciário e do Ministério Público, e não os aposentados que foram simplesmente ignorados nesse processo.

Diante dos desafios administrativos e das diferenças entre magistrados e membros do Ministério Público, como a ANAMPA pretende se estruturar para atender as demandas dos associados de forma eficiente?

Kulzer: Como diretor Financeiro, minha prioridade inicial foi estruturar toda a parte burocrática. Já administrei outras associações e sei o quanto é necessário ter cautela, tanto administrativa quanto financeiramente. Nossa preocupação é evitar uma estrutura muito pesada, garantindo que cada nova iniciativa seja planejada com responsabilidade.

Além disso, a junção de procuradores e juízes gerou desafios internos, pois são realidades distintas. Algumas questões que, para nós da Justiça do Trabalho, já são pacificadas, para eles ainda não são – e vice-versa.

Outro ponto de atenção é a diferença estrutural entre as carreiras. O Ministério Público tem uma organização nacional unificada, enquanto o Judiciário é fragmentado em 24 tribunais regionais, cada um com suas particularidades. Isso cria dificuldades, pois muitas demandas dos associados não são necessariamente nacionais, mas sim específicas de cada tribunal. Um problema enfrentado no TRT de Santa Catarina, por exemplo, pode não existir em São Paulo ou Pernambuco.

Por isso, a ANAMPA precisa atuar dentro dessa realidade, compreendendo as particularidades regionais e buscando estratégias que contemplem tanto juízes quanto procuradores aposentados de forma equilibrada.

Para encerrar, o que os associados podem esperar da ANAMPA nessa gestão pioneira?

Kulzer: O principal objetivo da ANAMPA é unir os aposentados e pensionistas espalhados pelo imenso Brasil, que hoje estão desamparados, tanto pelos tribunais quanto pelas demais associações. Nossas pautas não interessam aos ativos, porque, quanto mais benefícios eles conquistam para si, mais os inativos se tornam um estorvo para o sistema.

Por isso, os aposentados e pensionistas precisam de uma entidade que os represente de fato, que os ajude a entender o que está acontecendo nos bastidores e como as decisões afetam seus direitos. Muitos colegas não têm essa vivência de orçamento, administração e articulação política, porque passaram a carreira focados no trabalho técnico, resolvendo processos. Agora, precisam de uma voz que os esclareça e defenda.

Muitas decisões tomadas por tribunais e associações afetam os inativos, mesmo que, à primeira vista, pareçam não ter relação direta. Se não estivermos atentos, nossos direitos continuarão sendo enfraquecidos, pois os orçamentos são limitados.

Além disso, é fundamental informar bem não só os associados, mas também a mídia e a sociedade. Como disse anteriormente, muitas vezes, somos atacados como se tivéssemos participação em vantagens concedidas apenas aos ativos, quando, na verdade, só ficamos com o ônus dessas decisões. Se tivéssemos o bônus, pelo menos haveria um equilíbrio. Mas hoje, sofremos apenas o ônus. E essa injustiça precisa ser denunciada e combatida.