Com três décadas de Justiça Militar, Regina Gomes assume missão de impulsionar a ANAMPA no Sudeste

Com 32 anos de atuação na Justiça Militar da União, Regina Coeli Gomes de Souza conhece como poucos os bastidores da magistratura castrense, isto é, o ramo do Judiciário responsável por julgar crimes militares cometidos por integrantes das Forças Armadas. Iniciou a carreira como servidora, ascendeu à magistratura por concurso público em 1997 e, ao longo das décadas seguintes, passou por auditorias em todas as regiões do País. De Juiz de Fora a Brasília, de Manaus a Santa Maria, sua vivência acumulada moldou uma visão ampla sobre os desafios, contradições e especificidades do sistema.

Foi a primeira magistrada da Justiça Militar da União em muitas das unidades por onde passou e, mesmo em meio a estruturas rígidas e majoritariamente masculinas, nunca se furtou ao diálogo, à firmeza de posicionamento e à defesa dos direitos das mulheres, dos servidores e da justiça no exercício da função pública. Agraciada com a Medalha do Pacificador, do Exército Brasileiro, Regina é também reconhecida por sua contribuição para o fortalecimento da interlocução entre o Judiciário e as instituições militares.

A aposentadoria, em 2018, veio por escolha pessoal, mas não a afastou do engajamento institucional. Vice-presidente Sudeste da Associação dos Magistrados da Justiça Militar da União (Amajum) e hoje coordenadora regional da ANAMPA na mesma região, passou a atuar com mais energia na defesa dos aposentados e pensionistas — sobretudo diante das crescentes desigualdades entre ativos e inativos provocadas pela criação de benefícios restritos aos que permanecem na ativa.

Nesta entrevista, ela revisita sua trajetória, analisa a baixa presença feminina na magistratura militar, relata os bastidores de sua atuação e compartilha o que a motivou a integrar a primeira diretoria da ANAMPA. Com postura combativa diante de injustiças, Regina tem se destacado por não recuar quando os direitos dos aposentados estão em risco.

Fale um pouco sobre o que a motivou a entrar para o Direito e, mais especificamente, para a Justiça Militar.

Regina Gomes – A princípio, eu não ia fazer Direito. Terminei o ensino médio com 16 anos e queria mesmo era cursar Medicina. Estávamos de mudança de Brasília para o Rio — meu pai havia se aposentado, minha mãe também, e toda a família era do Rio de Janeiro. Logo fiz o vestibular e passei para Medicina, mas em Teresópolis. Meus pais não me deixaram ir — afinal era muito nova. Meu pai, que era procurador do Ministério dos Transportes, então sugeriu: “Faça vestibular para Direito no Rio e, se no fim do ano, ainda quiser Medicina, tenta de novo”. Passei em quarto lugar para o vestibular da Cândido Mendes e comecei a cursar Direito. Fiz Medicina novamente no fim do ano, passei para Petrópolis, e novamente a resposta foi “não”. Mas, para a minha sorte, eu já estava gostando de Direito. E segui nessa trajetória.

Então o primeiro passo mesmo veio de uma sugestão do seu pai e de uma adaptação às circunstâncias?

Regina – Exatamente. Durante o quarto ano da faculdade, saiu uma notinha no jornal sobre um concurso de nível médio para a Justiça Militar da União. Fiz a prova e passei. No ano seguinte, já formada, fiz o concurso para nível superior. Casei, tive minha filha, e continuei na Justiça Militar como servidora. Quando minha filha estava perto dos dois anos, abriram simultaneamente os concursos para o Ministério Público Militar e para a Magistratura.

Na época, eu era diretora de secretaria, já conhecia tudo ali dentro. Fiz os dois concursos, passei nos dois. Tomei posse primeiro no Ministério Público, em quarto lugar. Fiquei dois meses lá, enquanto saía minha nomeação para a Magistratura — onde fui aprovada em segundo lugar — e optei por seguir como juíza. Acabei ficando na Justiça Militar porque já estava lá dentro, conhecia bem os trâmites e as especificidades. Mas nada foi planejado. A Justiça Militar apareceu no meu caminho por acaso — ou por destino.

A senhora está entre as primeiras magistradas da Justiça Militar e tem uma visão privilegiada sobre a presença feminina na carreira jurídica. Como vê esse avanço — e por que ainda parece tão restrito, especialmente na Justiça Militar?

Regina – É verdade, fui uma das primeiras. No meu concurso, havia pouquíssimas mulheres — e isso continua sendo realidade. Hoje, há mais mulheres buscando cargos de liderança, como promotoras, juízas, delegadas. Mas a magistratura, especialmente na Justiça Militar, ainda é pouco procurada. Primeiro, porque os concursos exigem dedicação total. E nem toda mulher tem o suporte necessário, especialmente quando já tem filhos ou responsabilidades familiares. Eu mesma só consegui porque meu companheiro dividiu as responsabilidades familiares comigo. Outro fator é a falta de visibilidade da Justiça Militar. Ela nem sequer aparece na grade curricular das faculdades de Direito. Muitos nem sabem que existe — acham que é carreira militar, quando na verdade é civil. Então, falta informação e incentivo. Sem visibilidade, não há procura. E sem procura, seguimos com uma representação ainda muito baixa de mulheres nessa área tão importante.

A senhora dedicou 25 anos à magistratura e, ao todo, foram 32 anos de serviço público. Quais foram os maiores desafios dessa trajetória? E que contribuições acredita ter deixado para a Justiça Militar?

Regina – Um grande desafio foi, sem dúvida, lidar com a resistência de alguns colegas, homens e mulheres. Primeiro, porque eu vim da carreira de servidora — e, para muitos, isso parecia um “demérito”. Não bastava ter passado no concurso, era como se eu não fosse merecedora do cargo. Isso gerou um preconceito velado e, às vezes, escancarado.

Outro desafio marcante foi a inexperiência dos juízes militares. Na Justiça Militar da União, atuamos em escabinato com oficiais que são nomeados por três meses para julgar conosco. Muitos não tinham o preparo jurídico necessário, especialmente nos crimes que exigem domínio técnico. Já tive que intervir em audiências para explicar que o juiz militar não poderia aplicar uma pena de 15 anos, porque a lei só permite até 8, por exemplo. Isso exige muita paciência e didática.

Em termos de contribuição, acredito que fui uma juíza correta, firme e comprometida com a justiça. Me chamavam de “brava”, mas sempre fui justa. Tenho a consciência tranquila de ter feito o meu melhor. Fui muito ativa em levar conhecimento às organizações militares, promovendo palestras e explicando o funcionamento da Justiça Militar, os inquéritos, a legislação penal e administrativa. Participei e organizei congressos — inclusive aqui em Juiz de Fora — e sempre defendi pautas como o combate ao assédio moral, que vivi na pele e que só recentemente começaram a ser reconhecidas institucionalmente.

Minha maior contribuição talvez tenha sido essa: fortalecer o diálogo entre a Justiça Militar e as Forças Armadas, levando informação e ampliando a compreensão sobre o papel da magistratura militar.

A senhora passou por diversas auditorias militares ao longo da carreira. Como funcionam essas designações e de que forma isso contribuiu para sua visão sobre a Justiça Militar?

Regina – Quando fui aprovada no concurso, havia apenas uma vaga no Rio, onde eu morava na época, e o colega que ficou em primeiro assumiu essa vaga. Fui então para São Paulo, onde permaneci por dois anos e meio. Depois voltei ao Rio, de onde fiz uma permuta para Juiz de Fora. Mais tarde, fui promovida para Brasília.

As passagens por outras auditorias ocorreram por substituição. Como não havia número suficiente de juízes para cobrir todas as auditorias — cada uma com dois magistrados —, sempre que um colega saía de férias, eu era designada para substituí-lo. Passei por Santa Maria, Manaus, Porto Alegre e outras cidades. Ficava 30 dias em cada lugar, cumprindo todas as funções do magistrado titular.

Isso me deu uma bagagem imensa. Cada local tem uma realidade muito própria. Santa Maria, por exemplo, é como uma Juiz de Fora menor: cidade militar e universitária, com outro perfil de crimes. No Rio, enfrentei situações mais graves, como tráfico dentro de unidade militar, furto de armamento, apropriação indébita por oficiais, pensões indevidas. Em Manaus, era outro cenário: muita deserção, especialmente entre indígenas obrigados a servir — uma questão complexa e delicada. Já em Brasília, os processos tinham um perfil diferente, mais próximo do chamado “colarinho branco”. Tudo isso ampliou minha visão sobre a justiça militar e me deu uma compreensão mais profunda da diversidade de situações com as quais lidamos em todo o País.

Depois de toda essa bagagem, veio a aposentadoria. A senhora achava que era hora de descansar ou já estava pronta para uma nova missão?

Regina – Eu me aposentei em 2018 por vontade própria. Vou fazer 64 anos, mas naquele momento, queria mesmo aproveitar a aposentadoria. Mas logo começaram os problemas envolvendo a paridade entre ativos e inativos, e aquilo me inquietou profundamente. A verdade é que eu já alimentava algumas frustrações com as chamadas associações tradicionais desde o tempo da ativa. Muitas coisas não funcionavam como deveriam. Hoje, essas entidades estão voltadas quase exclusivamente para os ativos — e quando falo em ativos, incluo ministros e juízes. Muitos agem como se nunca fossem se aposentar. Para eles, aposentado é quase como alguém que não existe mais. Foi aí que enxerguei na ANAMPA uma chance real de mudança. Já integrava a Amajum — a Associação dos Magistrados da Justiça Militar da União, onde sou vice-presidente no Sudeste — e percebi que a ANAMPA tinha fôlego, energia e clareza de propósito. É uma entidade nova, mas com muito potencial para representar aposentados e pensionistas com seriedade. Por isso entrei para valer nessa luta.

A senhora já teve algumas experiências relevantes à frente dessa representação da ANAMPA. Quais têm sido os principais desafios e avanços nesse início de atuação, especialmente em relação ao diálogo com o STM e à mobilização dos aposentados da carreira?

Já nesses primeiros meses na ANAMPA, tivemos algumas experiências importantes. Um dos ministros do STM, que é nosso associado — e foi inclusive presidente do tribunal — nos ajudou bastante. Estamos aguardando uma audiência com a presidente do STM, pois queremos nos apresentar formalmente, para que saibam quem somos. Tenho trabalhado para trazer mais membros da Justiça Militar aposentados para a ANAMPA. Tivemos uma reunião recentemente com os novos associados, incluindo esse ex-ministro-presidente, e estamos tentando envolver outros ministros aposentados também. Isso fortalece nossa causa.

A verdade é que a situação dos aposentados está cada vez mais difícil. Os ativos estão ganhando até R$ 18 mil a mais por causa dos penduricalhos. Muitos aposentados estão profundamente frustrados, esgotados. Por isso precisamos estar unidos. A Justiça Militar tem que se fazer representar dentro da ANAMPA, e a ANAMPA precisa continuar esse trabalho coletivo de dar voz e vez aos aposentados. Essa é a única forma de avançarmos.

Como articuladora da ANAMPA, qual mensagem a senhora deixa tanto para os juízes aposentados que ainda não se associaram quanto para os que já integram a associação? E o que os associados podem esperar do seu trabalho nessa frente?

Regina – Aos que ainda não se associaram, deixo um convite: procurem a mim ou a qualquer associado da ANAMPA. A associação é uma equipe — e não falo só da diretoria, mas do coletivo. Aqui, um apoia o outro. Estamos todos juntos na mesma causa. Aos que já são associados, peço que confiem no nosso trabalho. Podem ter certeza de que estamos dando o nosso melhor para representar e defender cada um.

Vejam, em 32 anos de Justiça Militar, jamais imaginei que um dia precisaríamos de uma associação para lutar pelos direitos dos aposentados. Isso nunca passou pela minha cabeça. Quando tomei conhecimento da criação da ANAMPA, foi uma surpresa — mas uma surpresa muito boa. Acho, inclusive, que essa associação já deveria ter surgido antes – talvez em outras circunstâncias, claro. Mas tudo acontece no tempo certo. E, como costumamos dizer no jargão militar, foi quando “explodiu o pino” — quando passamos a ser preteridos, esquecidos, foi ali que surgiu a ANAMPA. Ainda não temos nem um ano de existência, mas já mostramos a que viemos.

Sempre acreditei que entidades maiores cuidariam de todos — ativos e aposentados. Mas essa também foi uma frustração. Infelizmente, muitos só vão perceber a importância da ANAMPA quando chegarem à aposentadoria. Mas ainda assim, tenho fé de que vamos conseguir reverter essa situação. A ANAMPA nasceu da necessidade e segue com legitimidade. E com muita disposição para lutar.