Em defesa da paridade, Sandra Cureau fortalece a articulação da ANAMPA no Centro-Oeste

Após 46 anos no Ministério Público, Sandra Cureau poderia ter optado pelo merecido descanso. Procuradora com atuação destacada em áreas sensíveis como meio ambiente, patrimônio cultural, direitos humanos e direito eleitoral, ela acumulou experiência à frente de cargos estratégicos, como vice-Procuradora-Geral da República e vice-Procuradora-Geral Eleitoral, além de ter sido a primeira diretora-geral da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Mas Sandra decidiu seguir na linha de frente.

Nomeada em fevereiro de 2025 como coordenadora regional da Associação Nacional de Magistrados Aposentados do Poder Judiciário da União e de Procuradores Aposentados do Ministério Público da União (ANAMPA), no Centro-Oeste, ela tem um histórico de protagonismo nas instituições por onde passou. Agora trabalha para garantir o respeito à paridade constitucional e o reconhecimento dos direitos dos aposentados e pensionistas. “Passamos a vida inteira lutando pelos direitos dos outros. Chegou o momento de lutarmos pelos nossos”, afirmou.

Cureau começou sua militância ainda jovem, em plena ditadura militar, nos tempos do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Ali, teve seu primeiro contato com a política estudantil e formou a consciência social que orientaria toda a sua vida pública. Em suas próprias palavras, o que a move até hoje é a “crença de que as pessoas precisam ter oportunidades mais justas”.

Na entrevista a seguir, Sandra fala sobre sua trajetória, os desafios da interlocução com o Congresso Nacional e o cenário que, por muito tempo, manteve os magistrados e procuradores aposentados à margem dos debates institucionais. Com a mesma firmeza que marcou sua carreira, ela assegura que não pretende recuar: “se eu puder ser lembrada como alguém que tentou construir um futuro mais igualitário para todos, estarei plenamente satisfeita.” Confira a íntegra:

O que a motivou a ingressar no Ministério Público e como foi o início da sua carreira?

Sandra Cureau: Eu era advogada trabalhista de sindicatos de empregados durante a ditadura militar. Naquela época, as diretorias dos sindicatos eram indicadas politicamente e, a cada mudança, os advogados acabavam sendo substituídos. Embora bem remunerada, como advogada do Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários do Estado do Rio Grande do Sul, que era enorme, não havia estabilidade. Sabia que, com a troca da diretoria, eu poderia ser dispensada.

Por isso, minha primeira estratégia para ter algo mais duradouro e estável foi me inscrever para prestar concurso para a magistratura trabalhista, mas o concurso da Procuradoria da República abriu antes. Resolvi tentar, até para testar meus conhecimentos, já que eu havia me formado há pouco tempo. Passei e, depois de entender melhor as atribuições, percebi que o Ministério Público tinha um campo de atuação muito mais amplo, algo que combinava comigo.

Percebi que o Ministério Público me proporcionaria uma atuação mais propositiva, iniciando as ações e provocando o Judiciário para que as questões fossem analisadas. E, de fato, assim foi durante toda a minha vida profissional. Trabalhei inicialmente na área criminal, foram oito anos. Atuei no Rio Grande do Sul, depois passei seis meses em Brasília e, em seguida, pedi remoção para Belo Horizonte, onde queria muito estar na época. Lá fiquei por quatro anos. Depois voltei ao Rio Grande do Sul e, em 1988, pedi remoção para o Rio de Janeiro, onde fiquei até ser promovida, por merecimento, a subprocuradora-geral da República, em dezembro de 1997.

A senhora ocupou posições muito relevantes ao longo da carreira. Mas, entre todas essas experiências, qual foi a mais desafiadora e por quê?

Sandra: Sem dúvida, foi a Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Ela foi criada pelo então Procurador-Geral da República, Geraldo Brindeiro (1995 a 2003), que enviou o projeto ao Congresso e me escolheu para ser a diretora-geral. Na época, eu já tinha uma trajetória como professora em várias universidades – lecionei em Belo Horizonte, Porto Alegre e no Rio de Janeiro – mas nunca tinha participado da criação de uma escola.

Começamos do zero. Não tínhamos sequer espaço físico, então a escola funcionou nos primeiros anos em um pequeno gabinete da PGR, na antiga sede da L2 Sul, em Brasília (DF). Também não havia equipe formada: os servidores que vieram dos quatro ramos institucionais do Ministério Público da União (MPF, MPT, MPM e MPDFT) não eram necessariamente os mais experientes, mas sim aqueles que os órgãos podiam ceder.

Para estruturar a escola, busquei referências. Visitei a tradicional Escola do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul, outra escola no Rio Grande do Norte e, depois, a Escola Nacional da Magistratura Francesa. Este contato com outros modelos me ajudou a definir o caminho. Criamos cursos de iniciação para novos procuradores, convênios com universidades para pós-graduações, boletins científicos e organizamos seminários internacionais de direito ambiental, trazendo professores da França, especialmente do centro de excelência em Direito Ambiental de Limoges (CRIDEAU) e também professores de Paris.

Depois, com a inauguração da nova sede da Procuradoria-Geral, conseguimos parte do prédio antigo para a escola e montamos salas de aula, auditório, salas de convivência e espaços de trabalho. Mas foi um processo difícil. Tínhamos que transformar a escola em algo atrativo para colegas dos quatro ramos e fazer com que eles abraçassem o projeto. Para mim, foi o maior desafio da minha carreira, porque simplesmente precisava dar certo.

E hoje, quando olha para a escola que ajudou a estruturar e vê no que ela se tornou, qual é a sua avaliação? E, se possível, gostaria que explicasse, também aos que ainda não conhecem, qual a relevância dessa escola dentro do Ministério Público.

Sandra: Hoje nos orgulhamos da ESMPU, que inclusive conta com uma sede própria. A ideia inicial, que veio do Procurador-Geral Geraldo Brindeiro, era de que a instituição tivesse uma estrutura fixa e, inclusive, um dormitório para acolher os colegas que viessem de outras localidades para cursos de iniciação e o nosso estágio probatório (vitaliciamento). Como tínhamos que alojar os colegas em hotéis e isso gerava um custo elevado, os cursos eram mais curtos. Com o tempo, conseguimos estender esses cursos de 15 dias para períodos mais longos e com uma estrutura melhor.

Nos cursos de iniciação, além das aulas nas principais áreas que os novos procuradores iriam enfrentar, nos quatro ramos do MPU, também apresentávamos o funcionamento das câmaras de coordenação e revisão, destacando a importância de cada uma. Havia, por exemplo, uma resistência por parte de alguns colegas em relação à Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais — na época chamada de Câmara de Índios e Minorias. Muitos não compreendiam sequer o conceito de “povo indígena” e viam isso como um desafio à noção de Estado brasileiro, o que era uma dificuldade cultural enorme.

A escola foi fundamental para mudar isso, para dar base teórica e prática a quem estava ingressando no Ministério Público, principalmente porque muitos iriam atuar em locais isolados, distantes dos grandes centros, como no interior da Amazônia ou do Pará. Nessas situações, o procurador está sozinho, tomando decisões e conduzindo processos sem uma rede de apoio próxima. Por isso, eles precisavam estar bem preparados desde o início.

E mais: acredito que esse trabalho da escola teve um papel decisivo para que o Ministério Público avançasse em áreas da tutela coletiva, como meio ambiente, patrimônio cultural e direitos humanos. Isso porque conseguimos estruturar o pensamento dos procuradores desde o começo da carreira, oferecendo uma visão clara do que era urgente enfrentar na realidade brasileira.

A partir dessa experiência, a senhora acredita que a escola contribuiu para mudar a lógica de atuação institucional?

Sandra: Sem dúvida. O curso de iniciação deu aos novos procuradores as ferramentas necessárias para que, mesmo em locais remotos e com estrutura mínima, eles soubessem exatamente o que priorizar. E, como eu disse, nas regiões Norte e Centro-Oeste, por exemplo, a complexidade é muito grande. São áreas extensas, com problemas gravíssimos de direitos humanos, de meio ambiente, de populações indígenas e de comunidades tradicionais.

Então, conseguimos mostrar para os Conselhos Superiores do Ministério Público que o número de processos não podia ser o único critério para a alocação de colegas. Às vezes, um procurador na Amazônia tem menos processos que um no Sul ou no Sudeste, mas o impacto do trabalho dele ali é gigantesco. Isso foi um ganho institucional relevante e a escola contribuiu para mudar essa perspectiva.

Além disso, acredito que a escola ajudou a qualificar o olhar do Ministério Público sobre as especificidades regionais. Conseguimos sensibilizar os novos procuradores sobre a realidade local e sobre as prioridades institucionais em cada região. Isso fez muita diferença no dia a dia das Procuradorias espalhadas pelo País, principalmente nas áreas de tutela coletiva e defesa dos direitos difusos.

A senhora foi nomeada como coordenadora regional da ANAMPA no Centro-Oeste, naturalmente pelos méritos de sua carreira. Mas o que a motivou a aceitar esse convite e quais serão suas principais frentes de atuação nessa função?

Sandra: Ao ingressar na ANAMPA, compreendi que era necessário fortalecer a mobilização dos aposentados. Infelizmente, as associações tradicionais nunca demonstraram uma preocupação efetiva com os inativos. Após a aposentadoria, é como se fôssemos imediatamente relegados ao esquecimento: perde-se o acesso à rede interna do Ministério Público e a outros recursos essenciais.

Além disso, as associações seguem voltadas prioritariamente às demandas dos ativos, que continuam sendo maioria e são os responsáveis pela escolha das respectivas diretorias. Continuo filiada à Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), mas é um fato que suas prioridades, como das demais associações de classe, não contemplam as demandas dos aposentados e pensionistas.

Diante disso, quando fui convidada, aceitei de imediato. Estou convencida de que precisamos de uma entidade forte e representativa para defender a nossa paridade, constitucionalmente assegurada, que está comprometida desde 2023 e, até o momento, não tem sido devidamente enfrentada pelas associações tradicionais.

Minha adesão à ANAMPA não foi com o objetivo de assumir cargos, mas sim pela convicção da importância dessa causa. Posteriormente, recebi o convite para a coordenação regional do Centro-Oeste e aceitei, ciente de que minha atuação em Brasília e minha experiência institucional em órgãos como o STF, TSE e STJ seria valiosa. Acredito firmemente na missão da ANAMPA de alcançar o respeito aos direitos dos aposentados e pensionistas e a paridade prevista na Constituição Federal.

Com base na experiência que a senhora já teve nas primeiras semanas de atuação pela ANAMPA, especialmente na interlocução direta com o Congresso Nacional, em defesa dos aposentados e em temas legislativos sensíveis, quais são suas perspectivas para esse trabalho junto ao Parlamento?

Sandra: Nessa primeira atuação, focamos principalmente em dialogar com os senadores sobre um projeto de lei que visa extinguir os chamados “penduricalhos”, frequentemente mencionados pela imprensa. Desde 2023, temos a Licença Compensatória, criada por resolução inconstitucional pelos conselhos nacionais, primeiro pelo do Ministério Público e depois pelo da Magistratura.

As Resoluções em questão preveem que, em casos de carga excessiva de trabalho, procuradores e juízes terão direito a um dia de folga a cada três dias trabalhados, o que, na prática, geraria 10 dias de licença em um mês de 20 dias úteis. Naturalmente, essa sistemática inviabilizaria o funcionamento das instituições, o que levou à conversão dessas licenças em pecúnia, prevista nas próprias Resoluções. Hoje, esse valor representa um acréscimo significativo nos vencimentos dos ativos, criando uma disparidade injustificável e inconstitucional em relação aos aposentados.

Fomos ao Senado para expor a inconstitucionalidade dessa medida, uma vez que, ao ser qualificada como indenização, ela contorna o caráter remuneratório, que exigiria aprovação do Congresso. Tivemos uma boa receptividade de alguns parlamentares, mas também notamos que outros já haviam sido fortemente pressionados por associações de classe que defendem a manutenção desses benefícios.

Além disso, explicamos que o projeto de iniciativa do Senado, visando extinguir os “penduricalhos”, foi alterado na Câmara Federal, retirando a necessidade de lei complementar para qualquer alteração remuneratória, o que ameaça ainda mais a paridade. Rebatemos também o argumento falacioso de que haveria uma debandada de membros do Ministério Público em razão da baixa remuneração – o que não é verdade. O número de candidatos por vaga segue elevadíssimo, e os poucos que saem costumam fazê-lo para assumir cartórios ou seguir outras carreiras igualmente atrativas.

Quem ingressa no Ministério Público ou na magistratura sabe da carga de trabalho envolvida. Sempre houve sobrecarga e nunca tivemos qualquer compensação especial por isso. Portanto, alterar subsídios sob a falsa alegação de estar criando uma indenização é distorcer a realidade e violar a Constituição. E seguimos trabalhando para conscientizar o Parlamento e a sociedade sobre essas distorções e para que os aposentados não continuem sendo prejudicados.

A senhora acredita que os chamados penduricalhos têm ofuscado o debate sobre a verdadeira necessidade de recomposição dos subsídios, medida que beneficiaria tanto ativos quanto aposentados no Judiciário e no Ministério Público?

Sandra: Sim, é exatamente isso. Os penduricalhos desviam o foco do debate sobre o subsídio. Quem está na ativa se beneficia dessas “licenças compensatórias convertidas em pecúnia”, que de compensatórias de excesso de trabalho não têm nada, uma vez que são pagas, indiscriminadamente, a todos os procuradores e magistrados em atividade, mesmo que nem estejam no exercício do cargo, e, na prática, acabam postergando a necessidade de discutir o reajuste do subsídio. Já os aposentados, que não recebem esses valores, seguem com uma defasagem crescente, apesar de terem despesas naturalmente maiores, especialmente com sua saúde. Este é o ponto central.

A meu ver, não cabe ao Ministério Público, ao Poder Judiciário ou às associações defender resoluções inconstitucionais. Nosso papel é justamente zelar pela Constituição e pelas leis. Infelizmente, temos visto as associações tradicionais endossarem essas medidas, principalmente porque a maioria dos seus associados está na ativa. São os procuradores e promotores em atividade que elegem as diretorias e, embora nós, aposentados, já representemos um número significativo, ainda somos minoria nesses processos decisórios. É lamentável observar essas entidades pressionando o Parlamento em favor de algo que viola frontalmente a Constituição. Na minha visão, essa atitude não condiz com a nossa missão institucional.

E o que os associados da ANAMPA podem esperar da sua atuação como coordenadora regional no Centro-Oeste?

Sandra: Podem esperar de mim o que sempre puderam: uma luta incansável pela defesa dos nossos direitos. Vou trabalhar com determinação para garantir que os aposentados tenham a paridade respeitada e que todas as pendências históricas de diferenças remuneratórias, que nunca são pagas, sejam finalmente reconhecidas.

Infelizmente, vejo colegas em situações dolorosas. Lembro de um subprocurador oriundo, como eu, do Rio Grande do Sul, que era da minha geração. Ele estava doente, cardiopata e com câncer, e adiou a aposentadoria até o limite porque sabia que, ao se aposentar, perderia parte significativa de sua remuneração. Acabou se aposentando em fevereiro e faleceu logo em seguida. Essa é a triste realidade que vivemos atualmente.

Sei que existem parcelas que legalmente não cabem ao aposentado, como diárias ou férias, mas não podemos renunciar à paridade constitucional. Por isso, a minha disposição é total. Vou lutar tudo o que puder – e além – para garantir que os aposentados tenham seus direitos preservados. Quando me aposentei, sabia que precisava me reinventar. E encontrei esse propósito na luta pelos colegas aposentados. Passamos a vida inteira lutando pelos direitos dos outros. Chegou o momento de lutarmos pelos nossos.