A PEC 45/2024, logo em seu primeiro artigo, enfrentou uma das questões mais sensíveis da administração pública: as distorções remuneratórias no Judiciário. Sob forte pressão, no entanto, o Congresso Nacional optou por manter as verbas que extrapolam o teto legal de remuneração do funcionalismo público, os chamados penduricalhos. Esse episódio reforça a urgência de repensarmos o modelo de gestão pública e de enfrentarmos práticas que há anos comprometem a credibilidade de uma das instituições mais relevantes da República.
Hoje, magistrados do Poder Judiciário e membros do Ministério Público recebem, além do subsídio fixado por lei, benefícios classificados como “indenizatórios”, quando não o são. Entre eles, destaca-se a “licença compensatória”, criada por resoluções administrativas do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Conselho da Justiça Federal (CJF), Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), mediante consenso com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Essas verbas garantem pagamentos mensais de R$ 12 mil a R$ 15 mil isentos de impostos, sem qualquer vínculo com trabalho extraordinário ou real necessidade de compensação.
Esses valores funcionam como artifícios que burlam o teto constitucional, criando um sistema paralelo de remuneração. Estamos falando de práticas que aprofundam a quebra de paridade entre ativos e aposentados e reforçam a percepção de que o Judiciário opera em uma bolha, com privilégios incompatíveis com o espírito republicano.
A PEC 45/2024, ao propor alterações no art. 37, § 11, da Constituição Federal, buscava determinar que as verbas indenizatórias respeitassem o teto remuneratório, com exceções tratadas exclusivamente por lei complementar. Essa regulamentação eliminaria subterfúgios, reduziria custos aos cofres públicos e promoveria equidade entre servidores ativos e aposentados. Mais do que uma medida de ajuste fiscal, a proposta reafirmaria princípios constitucionais como eficiência, moralidade e transparência.
Um dos principais argumentos contrários à PEC foi a alegação de que o fim dos penduricalhos resultaria em aposentadorias em massa de magistrados e membros do Ministério Público, colocando em risco o funcionamento dessas instituições. Contudo, esse argumento é insustentável. Ora, os anos de experiência que acumulei na magistratura me impedem de crer que uma carreira tão prestigiada e estável dependa de penduricalhos para reter seus profissionais. Essa narrativa subestima a vocação e o compromisso ético dos servidores públicos.
Apesar do desfecho desfavorável, este debate não pode ser encerrado. A manutenção dos penduricalhos compromete a credibilidade do Judiciário e do Ministério Público, reforçando a imagem de privilégios injustificados. Não podemos ignorar o paradoxo de que, mesmo durante o recesso de fim de ano, magistrados e procuradores continuam acumulando folgas compensatórias pelo simples fato de estarem em recesso.
Precisamos de uma remuneração transparente, alinhada aos princípios republicanos, que também cumpra um papel pedagógico: demonstrar que o Judiciário e o Ministério Público estão dispostos a fazer sua parte e a construir pontes com a sociedade. Por isso, em 2025 daremos ao Congresso Nacional uma nova oportunidade de corrigir essas distorções e fortalecer as instituições.
Que o próximo ano traga um sinal de justiça para aqueles que, como eu, dedicaram uma vida inteira acreditando na força da lei e na necessidade de respeitá-la. Para os aposentados, que enfrentam um cenário de desigualdade salarial em relação aos ativos, o fim dos penduricalhos equaliza direitos, fortalece as carreiras de maneira legítima e contribui para a construção de um Judiciário e Ministério Público mais eficientes e respeitáveis. Encarar os penduricalhos não é apenas sobre reduzir custos ou cumprir uma regra fiscal. Trata-se de reafirmar valores, reforçar a transparência e provar que o serviço público pode ser exemplo. O Judiciário e o Ministério Público têm a chance de liderar essa mudança, mas, para isso, precisam olhar para dentro e ajustar sua própria rota. Afinal, justiça não é apenas um ideal; é uma prática diária que deve começar em casa.
Sônia Roberts
Presidente da Associação Nacional de Magistrados Aposentados do Poder Judiciário da União e de Procuradores Aposentados do Ministério Público da União (Anampa)